O Autoritarismo e a COVID-19

Jefferson Ricardo
6 min readJun 2, 2020
Photo by Don Fontijn on Unsplash

A urgência na busca por uma resposta eficaz diante da emergência sanitária atual fez com que todos os olhos da comunidade internacional se voltassem para a COVID-19. Infelizmente, alguns governos vêm se aproveitando desse momento para aumentar seu poder centralizador perante a sociedade civil.

O primeiro exemplo claro de autoritarismo veio do próprio governo chinês, local do primeiro epicentro do então surto de pneumonia. Em um primeiro momento o governo central chegou a prender e tentou silenciar Li Wenliang, primeiro médico a perceber que o aumento nos casos de pneumonia em Wuhan se tratava de uma nova doença. O médico acabou vindo a óbito no dia 06 de fevereiro(por conta da COVID-19), tendo sua morte anunciada de forma dúbia. Os meios de comunicação estatais noticiaram a morte no dia 05 de fevereiro às 21h30, no entanto horas depois os próprios desmentiram a informação noticiando a morte do médico no dia 06 de fevereiro às 02h58.

Essas circunstâncias incertas levou a um movimento único na história política da República Popular da China. Milhões de posts inundaram a Weibo (uma espécie de Twitter chinês), os usuários pediam explicações sobre o falecimento de Li Wenliang. Porém tão logo foram publicados, os posts foram censurados. A Weibo apagou vários comentários que citavam o médico diretamente ou que deixavam subentender tratar-se da morte de Li Wenliang. Além do controle de informações, já corriqueiro na China, o governo central também negou propostas de investigações internacionais independentes sobre a origem do vírus.

Outros governos, já reconhecidamente autoritários, também mostraram tentativas de controle de informações. No Egito, por exemplo, o presidente Abdel Fattah el-Sisi minimizou o poder da COVID-19 por semanas, almejando não prejudicar a importante indústria turística do país. O governo egípcio expulsou um correspondente do jornal inglês The Guardian, além de “alertar” um jornalista do New York Times após um artigo do mesmo questionar os números oficiais de infectados no país.

Mas não é só o governo egípcio que está sendo acusado de modificar os dados oficiais divulgados, a Rússia de Putin também. O maior país do mundo em extensão territorial registrou oficialmente, até o dia da publicação deste artigo, 423.741 casos de COVID-19 e 5.037 mortes decorrentes da doença, demonstrando uma taxa de letalidade muito baixa quando comparada com outros países com números de infectados semelhantes. Especialistas acenderam o alerta logo no início da pandemia quando uma mulher, Valentina Zubareva, foi noticiada como a primeira morte por coronavírus na Rússia no dia 19 de março. Algumas horas depois a operação regional de controle do vírus foi salientar as circunstâncias da morte de Zubareva, logo após o prefeito de Moscou(cidade onde ocorreu o caso), Sergei Sobianin, desmentiu a informação e disse que a mulher havia morrido de embolia e não de COVID-19 (apesar da mesma estar infectada). Vários especialistas consideram que as estatísticas russas estão abaixo da realidade, acreditando que no mínimo a cifra de mortes é cinco vezes maior. Vale ressaltar também que qualquer manifestação pública contra o governo está suspensa pelo período em que durar a pandemia, mesmo que cumpra as medidas sanitárias de isolamento social.

Os números também são imprecisos na Venezuela de Nicolás Maduro, na Coreia do Norte de Kim Jong-un e na Turquia de Erdogan.

Mas o problema vai além dos governos tradicionalmente autoritários, afeta também as democracias ocidentais…

Os presidentes de países como Brasil e México, por exemplo, foram responsáveis por incentivarem aglomerações e desmentir a ciência. Tendo o primeiro participado de atos de apoio ao seu governo e questionado a legitimidade das medidas adotadas pelos governadores, já o segundo no começo da pandemia publicou um vídeo incentivando a população mexicana a ir às ruas. Ambos compartilham o discurso de que a economia nacional deve ser preservada. No entanto com o avanço dos casos no México, López Obrador mudou sua postura, ao passo que Jair Bolsonaro continua a gerar e participar de aglomerações.

Nos EUA o presidente Donald Trump toma uma postura dúbia em relação a proliferação do vírus em território americano há momentos em que minimiza o poder do vírus, já em outros assume a necessidade de aumentar os esforços contra a pandemia. O chefe do executivo americano também vem fazendo campanha do uso profilático da hidroxicloroquina, mesmo que estudos apontem, até o momento, uma incerteza na eficácia do uso da droga no tratamento da doença. Pensamento esse, aliás, compartilhado por líderes como Jair Bolsonaro (Brazil) e Nicolás Maduro (Venezuela).

Tanto o Trump quanto o Bolsonaro, que rotineiramente inflamavam suas bases contra a mídia, no período atual vem aumentando suas retóricas anti-imprensa. Tendo ocorrido no nosso país casos registrados de agressão contra repórteres que cobriam manifestações pró-governo e contra as instituições democráticas.

Contudo nenhum país ocidental viu a ascensão do autoritarismo de forma tão brusca e clara como a Hungria. O país conta, até o presente momento, com 3.921 infectados e 532 mortos, número relativamente baixo se comparado com países circunvizinhos. Porém o primeiro ministro Viktor Orbán insiste em manter o estado de emergência que lhe permite governar por decreto e que abre margem para a prisão de até 5 anos para jornalistas que publicarem notícias consideradas “falsas”. Infelizmente o Legislativo húngaro, cujo o partido de Orbán tem maioria, vem mostrando fraqueza em questionar as medidas tomadas pelo primeiro ministro.

A perseguição às minorias étnicas…

Na Índia, por exemplo, o governo de Narendra Modi decidiu por um lockdown de três semanas que convenientemente acaba por proibir as manifestações das minorias muçulmanas que vinham ocorrendo em todo país. As mobilizações questionavam a prisão de milhares de seguidores do Islã na região da Caxemira disputada ente Paquistão (país de maioria muçulmana) e Índia (país de maioria hindu), além da nova lei de cidadania indiana que basicamente transformou quase 2 milhões de indivíduos que acreditam no credo islâmico e que moram na região da Caxemira em apátridas, ou seja sem acesso aos direitos civis que cidadãos indianos tem.

A China que vinha perseguindo a minoria islâmica Uighur já há algum tempo, vem tentando gerar um “apagão” nas informações sobre esta população. Entretanto membros exilados da comunidade alertam que Beijing pode estar a endurecer as medidas de perseguição contra os que continuam em território chinês e denunciam que a propagação do novo coronavírus nos campos de concentração (isso aí, você leu certo) pode ser fatal. Os campos de concentração ou reeducação(como Beijing prefere se referir) de acordo com o governo chinês, são ambientes voltados para evitar que os muçulmanos se radicalizem evitando que organizações terroristas cheguem a China, porém diversos organismos de defesa dos direitos humanos questionam essa narrativa afirmando que pessoas que professam o Islã são detidas sem motivos e consideram esses campos como uma política de extermínio do governo chinês para com a população Uighur. Os exilados também cobram que a OMS envie uma comitiva para monitorar a situação sanitária dos Uighur, demanda esta que muito provavelmente não será atendida pelo governo chinês.

Os olhos da China em Hong Kong…

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A China que já vinha tentando implementar medidas mais severas em Hong Kong, região que detém um estatuto especial em relação a China continental, permitindo-lhe liberdades democráticas, tais como liberdade de imprensa e expressão, também aproveitou-se da pandemia para aumentar a influência sobre o território. Mesmo tendo engavetado o projeto de uma lei para extradição de cidadãos honcongueses para a China no ano passado (por conta dos inúmeros protestos ocorridos), este ano durante a pandemia o Parlamento chinês aprovou por 2.878 votos a favor e apenas 1 voto contra, a nova lei de segurança nacional para Hong Kong. A polêmica lei pune pessoas que propaguem o “separatismo”, a “subversão” e a “organização de atividades terroristas”, não deixando claro o que caracterizaria cada uma dessas categorias. Além de abrir uma brecha para que a polícia secreta chinesa trabalhe oficialmente na região autônoma. Vários organismos internacionais vêm questionando a decisão chinesa em aprovar essa lei, eles consideram um desrespeito a autonomia de Hong Kong.

O combate ao vírus deve estar em conjunto com combate ao autoritarismo…

A preocupação da comunidade internacional, que com razão, está debruçada na questão sanitária, também deve direcionar-se a ascensão de governos cada vez mais autoritários. Tendo em vista que estados centralizadores ameaçam uma ação conjunta e justa no tocante ao combate da pandemia. Já que eles não se mostraram abertos a divulgar seus dados de forma clara e segura ou tão pouco asseguraram assistência médica igualitária a todos os cidadãos nacionais.

Os ataques a mídia também configuram uma ameaça considerável na luta contra o vírus. Pois se a população não estiver munida de informações relevantes e verídicas não conseguiram se prevenir e assim diminuir a propagação da COVID-19 ao redor do globo.

Além do que, estas medidas autoritárias tomadas por alguns países não se extinguirão com o término do contágio, mas sim perdurarão e aumentarão o poder dos grupos dominantes ante os grupos minoritários.

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Jefferson Ricardo

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